terça-feira, 3 de julho de 2012

Disciplina Eclesiástica – Marca de uma Verdadeira Igreja


Por Gaspar de Souza[1]

Introdução

            Segundo os nossos irmãos da Reforma Protestante do Século XVI, três marcas caracterizavam uma igreja verdadeira. São elas: 1) Fiel pregação da Palavra de Deus, sem a qual a igreja não pode existir; 2) Administração fiel dos Sacramentos e; 3) Exercício da Disciplina Bíblica para manter a pureza da igreja. Este pensamento é bem explicado numa declaração da igreja que representava bem a fé daqueles irmãos. Este documento chama-se a Confissão Belga (1561). Diz assim aquele documento:
As marcas para conhecer a verdadeira igreja são estas: ela mantém a pura pregação do Evangelho3, a pura administração dos sacramentos4 como Cristo os instituiu, e o exercício da disciplina eclesiástica para castigar os pecados5. Em resumo: ela se orienta segundo a pura Palavra de Deus6, rejeitando todo o contrário a esta Palavra7 e reconhecendo Jesus Cristo como o único Cabeça8. Assim, com certeza, se pode conhecer a verdadeira igreja; e a ninguém convém separar-se dela (Cf. Gl 1:8; 1Tm 3:15; At 19:3-5; 1Co 11:20-29; Mt 18:15-17; 1Co 5:4,5,13; 2Ts 3:6,14; Tt 3:10; Jo 8:47; Jo 17:20; At 17:11; Ef 2:20; Cl 1:23; 1Tm 6:3; 1Ts 5:21; lTm 6:20; Ap 2:6; Jo 10:14; Ef 5:23; C1 1:18)

            Porém, a disciplina eclesiástica é, “talvez, a marca em declínio mais visível na igreja contemporânea”, diz Al Mohler[2].  Ainda segundo Mark Dever[3], a disciplina eclesiástica é “um aspecto vital da saúde da igreja”. É tão importante para a Igreja que, na sua ausência, juntamente com a ausência das outras duas marcas, a igreja não demorará muito a sucumbir à impureza moral e ética.
            Não se pode esquecer que tanto a Administração dos Sacramentos, quanto o Exercício da Disciplina, são frutos da fiel exposição da Palavra de Deus. Na falta da pregação fiel, as outras duas marcas também estarão ausentes. Se não se expõe a Escritura fielmente, tampouco os sacramentos serão administrados corretamente como Jesus Cristo instituiu, nem a disciplina será exercida pelos padrões da Escritura, passando a ser vista como despotismo.
            A própria palavra em si mesma, disciplina, é vista como negativa. Principalmente do último século para cá,
Desde que os princípios do pós-modernismo encontraram lugar no seio da igreja, qualquer conceito que ameace o individualismo e a liberdade de escolha quanto ao estilo de vida, comportamento, etc., é logo taxado de arcaico, passé. A dicotomia prática de muitos cristãos gera a ilusão de que a igreja não tem nada a ver com o procedimento ‘secular’ de seus membros. Nessa ‘nova era’ antropocêntrica, a igreja é vista como uma organização altamente dependente do indivíduo, e que precisa conservá-lo ao custo de várias exceções. O medo da impopularidade leva muitos líderes à cumplicidade e pecados são justificados em nome de uma atitude mais ‘humana’(2). Por outro lado, o que dizer daqueles que, em nome do zelo pela disciplina, cometeram injustiças e causaram mais males que bens?(3) Em todo esse contexto, a disciplina tem uma vida curta e a tolerância consagra-se como a virtude da moda.(4) Porém, o que acontece com uma igreja sem disciplina?[4]

Mas, o que fazer, então, para contornar este decadência disciplinar? O que é disciplina e qual a sua base escriturística e lógica? Quais os argumentos mais comuns para o não exercício da disciplina bíblica? Qual o pressuposto para o não exercício da disciplina? Como aplicá-la corretamente, de modo que os seus propósitos sejam alcançados? Aliás, quais os propósitos da Disciplina Bíblica?
É a fim de responder estes questionamentos que trataremos deste tema. Nossa base é a Escritura Sagrada (AT e NT); consultaremos outros autores que tenham tratado do assunto em questão.

1. Base Lingüística para Disciplina

            Primeiramente, é preciso dizer que o termo é um termo bíblico. De imediato retira-se a ideia de que disciplina bíblica seja algo externo às Escrituras ou à Comunidade da Aliança. Antes, tanto no AT como no NT, as palavras denotam “a correção que resulta em educação”.[5] Em português, na versão Revista e Atualizada, a palavra disciplina aparece cerca de trinta e três vezes. No Antigo Testamento, usa-se o verbo hebraico rs;y" (yasar – 42x), traduzido em nossas Bíblias como admoestar, corrigir, disciplinar, instruir, castigar, entre outros. Sua maior ocorrência encontra-se na Literatura de Sabedoria (Provérbios, Eclesiastes, Jó) e Salmos(6x e 9x); também ocorre no Pentateuco (8x, principalmente em Dt), nos Históricos (6x) e nos Profetas (13x; 7x só em Jr)[6]. Se considerarmos o seu correlato rs'Wm(musar), então estes números aumentam para quase 90 vezes: 9 no Pentateuco, 26 nos Profetas e 50 no Hagiógrafos (36 só em Pv)[7]. Considerando que só em Dt aparece cerca de 9 vezes, já é possível estabelecer que a disciplina é vista no contexto da Aliança de Deus com o Seu Povo (Dt 11.2ss. Cf. Lv 26.18, 28; Sl 6.1; 38.1 [2]; 39.11 [12]; 94.10; 118.18; Os 10.10), na qual se ver a “atividade poderosa [de Yahweh] na história da aliança, atividade mediante a qual ele se revela(cf. v. 7 com 4. 35ss)”.[8]
        A Disciplina do Senhor deve ser vista nos adjetivos atribuídos a Deus, tais como Pai (Dt 32.6; Cf. 1.31; Is 63.16; 64.8) e Instrutor / Mestre (Cf. Is 28. 26), que instrui por sua Lei (Sl 94.12). A Disciplina do Senhor não pode ser separada destes dois conceitos, pois a analogia “pai-filho”, “mestre-discípulo” demonstra que os atos de repreender, corrigir, instruir e atender às necessidades não são separados de um “relacionamento interpessoal de amor”[9], isto é, de um relacionamento pactual. A disciplina nesta relação transmite a certeza de que se é filho e discípulo daquele que disciplina, o Senhor.
        É patente no AT o caráter teocêntrico da Disciplina, sendo o próprio Deus a origem da mesma, no intuito de educar os seus filhos, para introdução de valores e normas de comportamento ético que se ajustem à Sua Lei (Cf. Dt 8.2ss; Pv 3. 11, 12).  Isto é chamado de “temor do Senhor”(Pv. 1.7) e tem sentido positivo.
            Nos Profetas este caráter é revelado também de forma negativa na apresentação das maneiras como Deus aplica a Disciplina. Normalmente associa-se à ideia de castigo ou punição (Cf. Dt 21.8; Os 10.10; Is 26.16; esp. Ez 5.17; Am 4.6 – 11). Os Profetas têm diante de si a Aliança contida em Dt 11.2ss e 28.15ss. e tais manifestações simplesmente referenciam que “Deus lida com o seu povo tendo como ponto de partida a advertência e a correção. [E] é assim que deve entender a severidade do exílio(Cf. Os 5.2; 7.12; Is 8.11)”.[10]
            Quanto ao Novo Testamento, normalmente os autores traduzem a palavra hebraica por paideiva(Paidéia) instrução ou disciplina (Cf. Hb 12. 7; 2Tm 3.16). Na raiz (pai" - pais) da palavra encontra-se a ideia de criança e educação.[11] O sentido de “ensinar” e “instruir” pode ser visto em Ato 7.22 e 22.3. Em Lucas 23. 16, 22 o sentido negativo de paideuvw(paideúõ) é apresentado como “espancar” ou “castigar”. O sentido positivo no NT é o mesmo do AT, isto é, “o castigo [de Deus] como ação amorosa de Deus, para preservar o homem do julgamento final”[12](Cf. Hb 12. 5, 6,9). Segundo Paulo, “quando julgados, somos disciplinados(paideuo,meqa - paideuómetha)[13] pelo Senhor, para não sermos condenados com o mundo”(1Co 11. 32). Parece deixar claro que, para os cristãos, a Disciplina do Senhor é correção em amor, a fim de evitar que eles se percam(Ap 3. 19).[14]. Diz o DITNT sobre isso[15]:
Aos cristãos não se poupa a doença e morte como resultado dos pecados deles. Aqui, a disciplina coincide em parte com o julgamento divino. Sendo, porém, que este julgamento tem a natureza da disciplina, os crentes, por causa dele, graciosamente são poupados de entrarem no juízo divino final do mundo, sendo portanto, salvos da perdição [...] Paulo sabe, mediante a sua experiência de levar a efeito sua comissão apostólica (2 Co 6.9) que a correção não é uma contradição do amor de Deus, mas, pelo contrário, dever ser entendida à luz deste amor.(itálicos meus)
            Disciplina é, portanto, um ato educativo de Deus para com seus filhos.

2. Base Teológica da Disciplina
            Fundamentado nos conceitos acima, principalmente no contexto da Aliança, a Disciplina deve ser entendida também teologicamente. E este sentido é o de povo de Deus, aqueles que foram separados por Ele para ser sua “nação santa”(Ex 19.5, 6). O conceito expresso em ser povo da aliança é o de santidade. John Sittema[16] diz que santidade no AT tem duas conotações: separação e pureza. Esta última é facilmente entendida pela maioria dos cristãos. Mas, o conceito de separação não é uma ideia fácil de aceitar. Ora, no AT o princípio da separação do Povo de Deus é percebido principalmente na expressão “cortado de...” ou “eliminado de...”(Cf. Êx 30.33, 38; Lv 17.4, 9, 14; Nm 19.20) e nas analogias da separação dos animais, na plantação ou no uso de “roupas misturadas” (Lv. 19.19). Tal postura simbolizaria
De uma forma clara e tangível [que] Deus estava identificando Israel como seu povo separado/santo, que não devia se misturar com o mundo. Não deviam se casar com pessoas de outros povos, adorar outros deuses e nem misturar sua vida da aliança com quaisquer outras práticas, valores e pessoas das cidades e regiões onde viveriam. E para reforçar essa idéia (sic), são dados mandamentos específicos de separação aplicada às plantas, animais e até mesmo tecidos – aspectos da vida cotidiana de Israel que refletiam o princípio divino de santidade

            Assim, no Antigo Testamento, a fim de evitar que o Povo da Aliança fosse contaminado por pecados externos e internos, o Senhor, através de Sua Lei Moral e posteriores desmembramentos desta Lei, mostrou ao Seu Povo o que deveria ser feito ao transgressor, principalmente no sistema de sacrifícios de Israel.  Em certos casos, o transgressor deveria ser eliminado (trk karat - literalmente cortado) do meio do povo(Cf. Nm 15. 29 – 31). Tal ato indicaria que existia distinção entre os membros da aliança e os que não eram membros. Entre as transgressões que deveriam ser eliminadas, após exame se houve ou não intenção[17], encontram-se a rebelião contra o pacto (Gn 17. 14); profanação do Templo de Deus, do Dia do Senhor e da Falsa Adoração (Ex. 12.15-19; 30.33; 31.44; Lv. 7.20-27; Lv. 17.14-19; Nm. 9.13); Atos de idolatria ou feitiçaria (Lv 20. 3 – 6) e sexo ilícito (Lv. 18. 29; 20. 17, 18). Estes atos tinham em comum a externalidade da rebelião, sendo considerados uma grande ofensa contra Deus e o próximo[18], e deveriam ser reprovados para não contaminar o Povo e não profanar o nome do Deus da Aliança (Cf. Ez 20. 9, 14, 22; 36.23).
            Sei que para a mente moderna tais atos parecem desumanos, mas, segundo o padrão divino, a atitude é um ato de misericórdia, dando a possibilidade de restauração e perdão ao transgressor e ao povo, em quem o juízo divino poderia vir, caso não fosse aplicado a disciplina (Cf. Js 22. 11 – 20; Ne 13. 13 – 29; Ed 9 – 10).
            Isto também é visto o Novo Testamento. A igreja de Cristo é a comunidade dos Eleitos na Nova Aliança que tem a Jesus Cristo como Rei (Cf. 1 Pe 2. 9, 10).[19] Sob Ele, a disciplina é a mesma, mas com diferença na administração.
Entre tantos designativos para a Igreja de Cristo[20], um reflete bem o nosso assunto e as análises anteriores. A igreja é chamada de santa (Ef. 5.27) e os membros desta igreja são chamados de santos (At 9. 32; Rm 1.7; 15.25; 1Co 1.2; 6.1, 2; 14.33; 2Co 1.1; Ef 1.1, 4; Fp 1.1; 4.21, 22; Cl 1.2, 12, 22, 26 etc.).
Como “comunidade dos santos”, as Escrituras declaram que a Igreja de Cristo não é deste mundo, antes é separada dele, mesmo que esteja nele e seja enviada a ele (Jo 17. 11, 14, 16, 18)[21]. Por ser separada do Mundo, o código de ética da Igreja se contraporá ao Mundo (Cf. Hb 12.10 – 14; 1Jo 2. 15 – 17; 1Co 5. 1 – 13), fazendo com que este passe a odiar a Igreja, pois a Igreja testemunha contra a corrupção do Mundo (Jo 7. 7; 15.18, 19; 1Jo 3. 13; Cf. Ne 9.26; Lc 11.47; 1Ts 2.15). E para que este testemunho seja eficaz, a igreja deve reprovar abertamente o pecado e/ou exercer a correção daqueles que se desviam (2Ts 3.14; 1Co 5.2; 2Jo 10, 11; Jd 22, 23). Isto nos leva ao seguinte questionamento – quem exerce esta disciplina?

3. O Poder da Igreja em Disciplinar
A CFW (XXX, § i) afirma o seguinte: “O Senhor Jesus Cristo, como Rei e Cabeça de sua Igreja, nela instituiu um governo nas mãos de oficiais dela, distinto do magistrado civil”.[22] Tanto no AT como no NT, o exercício da disciplina eclesiástica era realizada por homens a quem Deus constitui sobre o Seu Povo. No AT eram os juizes ou sacerdotes, que, inclusive exerciam o governo civil[23] (Ex 21.22; 22.8; Dt 1.16) e os anciãos (Dt 11. 12; 21. 19; 22.15, 18). No NT, este exercício foi dado aos “Oficiais”, Apóstolos em primeiro lugar (Mt 16. 18 – 20; 18. 15 - 20) e presbíteros em segundo lugar (1Tm 3. 1 – 7; Tt 1. 5 – 13). A igreja também participa deste exercício, primeiramente no aspecto fraternal e pessoal (Mt 18. 15) e, depois, em assembleia reunida (1Co 5. 2 – 11; 2Ts 3.6, 14, 15).
Este poder da igreja é espiritual e chama-se “chaves do reino dos céus”(Mt 16. 19) relacionadas ao “ligar e desligar” (18.15 - 18). É certo que estas duas expressões já implicam o poder da igreja em “abrir”(ligar) ou “fechar”(desligar) o reino dos céus aos impenitentes, como deixa claro o contexto (Mt 18. 17 – 20). Refere-se, então, à disciplina eclesiástica. A Igreja de Cristo tem o “poder das chaves”, podendo “recebe à comunhão, bem como para excluir os indignos de sua própria comunhão”.[24]
Não é que os Oficiais tenham poder intrínseco de perdoar ou não perdoar pecados, mas declarar[25] a vontade de Deus para aqueles que não se submetem à vontade revelada de Deus. Talvez a exposição da CFW (XXX, § ii) seja clara sobre este sentido:
A esses oficiais estão entregues as chaves do Reino do Céu. Em virtude disso eles têm respectivamente o poder de reter ou remitir pecados; fechar esse reino a impenitentes, tanto pela palavra como pelas censuras; abri-lo aos pecadores penitentes, pelo ministério do Evangelho e pela absolvição das censuras, quando as circunstâncias o exigirem.(Mt.1619; Mt.18.17-18; Jo.20.21-23; 2 Co.2.6-8).

            Neste poder declarativo, os Oficiais não precisam temer o exercício da disciplina. Nos textos bíblicos acima,
Jesus Cristo está ensinando que a disciplina eclesiástica terá sanção no céu. Mas isso não quer dizer que a igreja precisa esperar que Deus endosse suas atitudes depois que elas acontecerem. Em vez disso, sempre que a igreja cumpre o papel disciplinar pode estar confiante de que Deus já começou o processo espiritualmente.[26]

4. Quais os Propósitos da Disciplina Bíblica?[27]
            Já vimos que o Senhor não permitirá que seu nome seja profanado, nem que o seu povo seja contaminado. À luz disto e outras porções das Escrituras, é possível encontrar quatro propósitos por que a Igreja deve exercer a disciplina do Senhor[28].
  1. Restauração do irmão faltoso (Mt 18. 15; Gl 6.1; Tg 5.20) – “Chamar e ganhar para Cristo os irmãos ofensores”(CFW XXX § iiia)
Este é o aspecto restaurativo da disciplina. Ela não deve ser vista como, primariamente punitiva, mas restaurativa, isto é, a busca e a tentativa de impedir que a ovelha de Cristo se desvie (2 Co 2. 5 – 11). Este aspecto deve ser feito em amor, apresentando os perigos do pecado e do desviar-se do Senhor.
  1.  Impedir que o Pecado se espalhe (1Co 5. 6, 7; 2Ts 3.6 – 15; Hb 12. 15) – “Impedir que outros pratiquem ofensas semelhantes, para purgar o velho fermento que poderia corromper a massa inteira” (CFW XXX § iiib)
Neste propósito, Deus preserva o rebanho da contaminação pelo exemplo do transgressor. Aqui fica claro que o não exercício da disciplina conduzirá outros a práticas semelhantes. Assim, a fim de preservar o rebanho, a disciplina deve ser aplicada, protegendo a pureza da Igreja de Cristo (Gl 5.9).
  1. Preservar a Honra da Igreja e de Cristo Jesus (Rm 2.24; 1Co 5. 2; 6.6; 2Pe 2.12; 3.14; Ap 2.14 – 16, 20) – “Vindicar a honra de Cristo e a santa profissão do Evangelho” (CFW XXX § iiic)
Sem dúvidas alguma, sempre que a Igreja negligencia o testemunho de Cristo, Jesus é blasfemado entre os incrédulos. Sempre que a Igreja deixa de tratar o pecado abertamente, ela será vista como hipócrita (Mt 7. 1 – 5; Cf. 1 Pe 4. 14 - 19) e será condenada com o mundo (1Co 11. 32)
  1. Evitar o Justo Juízo de Deus sobre seu Povo (Ap 2. 18 – 29) – “Evitar a ira de Deus a qual com justiça poderia cair sobre a Igreja, se ela permitisse que o pacto divino e os seios dele fossem profanados por ofensores notórios e obstinados”(CFW XXX § iiid)
Este é, sem dúvida, um dos aspectos mais temível. O Senhor havia dito às igrejas de Éfeso, de Pérgamo e de Tiatira que, pela falta de exercício disciplinar daquelas igrejas, ele traria juízo sobre a igreja (Ap 2. 5, 16, 22, 23) para que soubessem que, embora os homens não se dessem conta da seriedade do pecado, Ele “sonda os rins e os corações”(2. 23). Assim, não exercitar a disciplina é esperar a certeza do julgamento de Deus.

5. Como a Igreja Aplica a Disciplina?
            Talvez seja aqui que surja a maior dificuldade. Como exercer a disciplina eclesiástica? Deve-se, primeiramente, saber se as Escrituras fazem alguma classificação acerca dos pecados. De fato, alguns pecados são mais odiosos do que outros (Pv. 6. 16 – 19; Ml 2. 16) e alguns são públicos e notórios (1 Tm 5. 24). Segue-se que, a fim de exercer fielmente a disciplina, deve-se considerar estas coisas, bem como a maturidade na fé(Rm 14. 1 – 23). À luz de Mateus 18. 15ss, segue-se que a disciplina é, antes de tudo, preventiva e deve começar entre os fraternos (se teu irmão...) para que os outros passos sejam dados.
            Também a depender da gravidade do pecado – público ou privado. Wayne House[29] apresenta o seguinte gráfico sobre o problema e o procedimento em cada caso de disciplina:
Passagem
Problema
Procedimento
Propósito
Mateus 18. 15 – 18
O pecado de um “irmão” (não definido)
  1. Repreensão em particular
  2. Reunião em particular
  3. Anúncio público
  4. Exclusão pública
Restauração (ganhar “a teu irmão”)
1 Coríntios 5
Imoralidade
Avareza
Idolatria
Embriaguez
Fraude
1.            Lamentar coletivamente
2.            Remover do Grupo
3.            Não se associar
Restauração (5.5)
Purificação (5. 7)
2 Coríntios 2. 5 – 11
Não citado
Após o arrependimento sincero
  1. Perdoar
  2. Confortar
  3. Amar
Restauração (2. 11)
Proteção (2.11)
Gálatas 6. 1
“alguma falta”
Restaurar:
1.     Como pessoas espirituais
2.     Com brandura
3.     Com reflexão
Restauração
2 Tessalonicenses 3. 6 – 15
Preguiça, maledicência (“se intrometem”)
  1. Observá-lo
  2. Não se associar com ele.
  3. Adverti-lo (como irmão, não como inimigo)
Restauração (“para que fique envergonhado”)
1 Timóteo 5. 19, 20
Denúncia contra Presbítero sem testemunha
  1. Necessidade de testemunhas
  2. Se o pecado continuar, repreender diante de todos
Purificação (“para que também os demais temam”)
Tito 3. 9 – 11
Comportamento faccioso
1.     Admoestá-lo duas vezes
2.     Evitá-lo (como pervetido, pecaminoso, auto-condenado)
Proteção (contra divisões)

            Ainda segundo House[30], é possível elaborar um fluxograma da Disciplina Eclesiástica, conforme abaixo.
1.    Imoralidade Sexual aberta (1 Coríntios 5. 1 – 13)
2.    Conflitos pessoais não resolvidos (Mateus 18. 15 – 20)
3.    Espírito Faccioso (Romanos 16. 17 – 18; Tito 3. 10)
4.    Falsos Ensinos (Gálatas 1. 8, 9; 1 Timóteo 1. 20; 6. 3 – 5; 2 João 9 – 11; Apocalipse 2. 14 – 16)




6. Objeções à Disciplina Eclesiástica        
            Os homens são de tal forma que procurarão, em todas as ocasiões, desculpas para não aplicarem ou se submeterem à disciplina bíblica. Abaixo, o Rev. Arial Dias[31] apresenta algumas possíveis resistências à disciplina bíblica.
  1. Argumento do Amor – a disciplina eclesiástica é contrária ao amor. Resposta (Rm 13. 8 – 10;. Hb 12. 4 – 12)
  2. Argumento da Liberdade – a disciplina eclesiástica opõe-se liberdade. Resposta (Jo 8. 31 – 26; Tg 1. 25)
  3. Argumento da Felicidade – a disciplina eclesiástica opõe-se a felicidade do cristão. Resposta (Sl 1; Is 48. 22; Hb 12. 11)
  4. Argumento do Afastamento – a disciplina eclesiástica afastará as pessoas da igreja. Resposta (Sl 37. 23, 24; 1Jo 2. 18, 19)
  5. Argumento da Hipocrisia – a disciplina eclesiástica é um ato de hipocrisia, pois todos na igreja são pecadores. Resposta (1 Co 6. 1 – 11; At 5. 1 – 11)
  6. Argumento da Injustiça  - a disciplina eclesiástica pode ser aplicada injustamente ou ser utilizada como instrumento de perseguição. Resposta (Is 5. 20, 22; Mt 23. 1 – 36)
Diz o Código de Disciplina da IPB: “Disciplina Eclesiástica é o exercício da jurisdição espiritual da Igreja sobre seus membros, aplicadas de acordo com a Palavra de Deus”.
Na jurisdição espiritual, a Igreja exerce o direito de punir os pecados dos seus membros, mesmo que esses pecados sejam práticas permitidas na sociedade em que a igreja está inserida. A igreja não pode faltar no combate ao pecado interno. A sua saúde espiritual depende da sua pureza. ‘Você pode ter disciplina sem santidade, mas não pode ter santidade sem disciplina’[32]

Conclusão
Estamos em dias em que Disciplina Eclesiástica, quando não desprezada, não é aplicada como deveria ser. Em dias de “crentes melindrosos”, em época do “mercado eclesiástico”, muitos pastores e Conselhos temem aplicar a Disciplina por medo e, principalmente, para não perder membros. Mas, pergunto, uma árvore que é corretamente podada, tende a morrer ou dar novos frutos?(Jo. 15.2)



[1] Apresentado no 2o Encontro sobre Presbiterianismo, na Igreja Presbiteriana dos Guararapes – PE, realizado nos dias 13 – 17 julho de 2009. Esta palestra foi apresentada no dia 16. 
[2] MOHLER, R. Albert. Church Discipline – the missing mark. Disponivel em: . Acesso em> 15 jul 2009.
[3] DEVER, Mark. Nine Marks of a Healthy Church.  Wheaton: Illinois, Crossway Books, 2004, p.
[4] SANTOS, Valdeci da Silva. Disciplina na igreja. In: FIDES REFORMATA, v. 3, n.1, pp. 149 – 156.
[5] HARRIS, R. Laird et al. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento(DITAT). São Paulo – Ed. Vida Nova, 1998, p. 632.
[6] WALTKE, Bruce (org). New International Dictionary of Old Testament Theology and Exegesis(NIDOTE).: Vol 2. Grand Rapids: Zondervan Publishing House,  1997, pp. 479 – 482.
[7] HARRIS, idem.
[8] Idem.
[9] Idem, p. 633; WALTKE, idem.
[10] HARRIS, idem.
[11] Pediatria e Pedagogia
[12] COENEN, Lothar; BROWN, Colin. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento(DITNT). vol. 1. São Paulo: Ed. Vida Nova, 2000, pp. 652 – 654.
[13] Note a forma indicativa presente passiva do verbo
[14] Em 1Co 11. 32b diz i[na mh. su.n tw/| ko,smw|(hiná me sün tô kósmô). Exatamente na conjunção de propósito mais preposição de associação. Deus nos disciplina a fim de que não sejamos condenados juntamente com o mundo.
[15] Idem, p. 653
[16] SITTEMA, John. Coração de Pastor – resgatando a responsabilidade pastoral do presbítero. São Paulo: Ed. Cultura Cristã, 2004, p. 244, 245.
[17] Se não foi por ignorância (Nm 15. 29 – 31)
[18] ROOD, Brent. Church Discipline. Disponível em: . Acesso em: 15 de jul. 2009.
[19] Com isto não pretendo, em hipótese alguma, dizer que há “dois povos de Deus”. Existe um, e somente um, povo de Deus, que existe desde a fundação do mundo. Estes são chamados de “meu [de Deus] povo”(singular)
[20] “Família de Deus” (Ef 3.14; 1 Tm 5. 1, 2; 2Co 6.18 etc) – Deus é nosso Pai; “Noiva de Cristo” (Ef 5.32; 2Co 11.2; Ap 19.7; 21.9); “ramos de uma videira”(Jo 15.5); “oliveira”(Rm 11. 17 – 24), “lavoura”(1Co 3.6 – 9); “edifício”(1Co 3.9); “templo”(1Pe 2.5); “corpo de Cristo”(1Co 12. 12 – 27); “casa de Deus”(Hb 3. 6).
[21] Chamo a atenção para as preposições usadas por João. v. 11 - evn tw/| ko,smw|;(’en tô kósmô) v. 14 - ouvk eivsi.n evk tou/ ko,smou; (ouk eisin ek tu kósmu) v. 16 - evk tou/ ko,smou ouvk eivsi.n; (’ek tu kósmu ouk eisin) v. 18 - eivj to.n ko,smon\(’eis tón kósmon)
[22] HODGE, A.A. Confissao de Fé de Westminster Comentada. São Paulo – Ed. Os Puritanos, 1999, p. 491.
[23] Isto é chamado de “governo teocrático”
[24] idem, p. 496.
[25] Chamo a atenção para o uso do particípio perfeito passivo em Mt 16. 19 e 18. 18, traduzido pela ARA como “terá sido ligado” ou “terá sido desligado”, antecipado pelos subjuntivos aoristos ativos. Aquilo que os Oficiais declarassem na terra, já teria começado a acontecer nos céus, embora a Igreja possa demorar a exercer a disciplina.
[26] GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática. São Paulo- Ed. Vida Nova, 1994, p. 748.
[27] Cf. PORTELA, F. Solano; SANTOS, Valdeci; NICODEMUS, Augustus; KNIGHT III, George. Disciplina na Igreja – uma marca em extinção. São Paulo: Ed. Os Puritanos, 2001. CASIMIRO, Arival Dias. Resistindo a Secularização. São Paulo: SOCEP, 2002, pp. 55 – 58.
[28] HODGE, idem, p. 497; GRUDEM, idem, pp. 750 – 752. CALVINO, Juan. Institución de la religión cristiana. Tomo 2. Espanha: FELIRE, pp. 969 – 978.
[29] HOUSE, H. Wayne. Teologia Cristã em Quadros. São Paulo: Ed. Vida, 1999, p. 134.
[30] Idem, p. 135
[31] idem, pp, 56, 57.
[32] Idem, p. 59.

Nenhum comentário: